Este artigo propõe uma análise da peça O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, sob a ótica dos conceitos de cena e de obscenidade. Essa peça se estrutura em torno de um escândalo causado pelo fato de o personagem Arandir beijar um homem que agonizava no asfalto após ser atropelado, o que feria os códigos morais instituídos à época. Contudo, observa-se que, na peça, esse escândalo não está relacionado apenas com a transgressão moral, mas principalmente com a própria encenação. Nesse sentido, nota-se que a peça agencia diversas encenações, as quais são apresentadas como elementos constituintes da ordem social. Assim, a obscenidade advinda das diversas encenações que se sobrepõem parecem colocar em jogo o fato de se estar dentro/fora de cena, ou do acúmulo de representações.
1 José Francisco Quaresma (UEL) RESUMO: É comum ver atribuído a Nelson Rodrigues o título de pioneiro da moderna dramaturgia brasileira. Sua arte distinta é sustentada por uma linguagem nova. Em O beijo no asfalto essa linguagem evolui e alcança uma forma sintética, com semântica particular, que empresta aos diálogos das personagens uma constituição absoluta e precisa, revelando-se fundamental no sentido de reforçar a singularidade de sua escrita. Neste trabalho, além de se observar a questão acima, buscar-se-á aludir a questões semiológicas e examinar, a partir da personagem protagonista, a qual o autor denomina herói, o motivo que o faz designar sua obra como tragédia carioca. PALAVRAS-CHAVE: dramaturgia brasileira, Nelson Rodrigues, O beijo no asfalto. Nelson Rodrigues ( ) atinge o sucesso, em 1943, com Vestido de noiva, seu segundo texto teatral, cujo valor o alçou à categoria de poeta e tornou a obra referência histórica do teatro brasileiro. Entretanto, nos anos seguintes, com a produção de novas peças, é imediatamente ridicularizado pela crítica, acusado de pequeno burguês neurótico, imoral e obsessivo (LINS 1979: 163). De acordo com Magaldi (1992: 143), O beijo no asfalto foi escrito para a companhia Teatro dos Sete, a pedido da atriz Fernanda Montenegro e teve sua estréia no Rio de Janeiro no ano de 1961, sob direção de Fernando Torres. Portanto, observa-se um autor que compõe para ser encenado. De livre lavra ou sob encomenda, um novo texto, salvo percalços causados pela censura, deve rapidamente partir para sua complementação cênica (MAGALDI 1992: 12). Nelson Rodrigues é autor maduro ao escrever O beijo no asfalto, seu décimo terceiro texto dramático, cujo enredo pode ser assim descrito: Um homem da rua perde o equilíbrio, cai e é atropelado por um ônibus. Um outro homem, transeunte (Arandir), socorre o acidentado, que na agonia da morte lhe pede um beijo. Ele atende aquele último pedido e beija no outro a morte que se aproxima. Assistem à cena o sogro de Arandir (Aprígio), alguns populares e um repórter de polícia (Amado Ribeiro). Este, mancomunado com um delegado de polícia (Cunha), articula a partir do episódio um
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2 57 romance de homossexualidade e de crime, acusando Arandir, que é aos poucos envolvido pela calúnia, cercado pela zombaria e desprezo, primeiro dos estranhos e, depois, dos que lhe são íntimos. Afinal, também de si próprio se envenena e passa a duvidar do significado de seu gesto. Vê-se rodeado de olhos que o distinguem e dedos que o apontam. Devido ao clima de obsessão, Arandir abandona o emprego, refugia-se num hotel ordinário e envia recado para a mulher (Selminha) ir ao seu encontro. Convite negado, quem chega é a cunhada (Dália) e, em seguida o sogro (Aprígio). Este, após expulsar a filha do recinto revela a Arandir um amor incontido e o mata a tiros. É impossível deixar de atribuir a Nelson Rodrigues o papel de renovador da literatura dramática brasileira, cujo gênio influenciou muitos outros dramaturgos, não somente quanto ao aspecto da mudança temática, porém, notadamente quanto à expressão verbal que reflete a linguagem coloquial. Sábato Magaldi, estudioso da obra do autor, destaca a singularidade de sua escrita: enquanto os dramaturgos da geração anterior adotavam um diálogo artificial, com um tratamento diverso da linguagem corrente, ele restringiu a expressão cênica a uma absoluta economia de meios, conseguindo de cada vocábulo uma ressonância admirável. Tem-se a impressão [...] que as palavras só poderiam ser as que se encontram ali, como uma cadeia de notas exatas, as únicas capazes de obter o maior rendimento rítmico e auditivo. (MAGALDI 1997: 218) Encerradas as fases das peças denominadas psicológicas e míticas, de acordo com a organização efetuada por Sábato Magaldi (1992: 01), o autor volta-se para a fase que denominou tragédias cariocas e, então, intensifica os aspectos da singularidade da escrita ao adotar mais profundamente os prosaísmos do cotidiano. A inovação advinda da utilização da linguagem corrente, coloquial, se manifesta nos diálogos das personagens que, antes de alcançar a cena teatral se institui como literatura dramática renovadora. Assim, ao utilizar a linguagem simples das conversas do homem comum, com o uso de gírias, modismos e, mesmo imperfeições gramaticais, como salienta Célia Berrettini (1980: 160), o autor avança para o emprego de frases incorretas, réplicas incompletas, por vezes interrompidas, com espaço para monossílabos, exclamações ou interrogações, algumas nem sempre respondidas, o que, no caso de O beijo no asfalto, contribui sobremaneira para a atmosfera de suspense, de acordo com o trecho abaixo: AMADO: (feroz e exultante) D. Selminha, o banho é um detalhe mas que basta! Pra mim basta! O resto a senhora pode deduzir. SELMINHA: (lenta e estupefata) O senhor quer dizer que meu marido!... AMADO: (forte) Exatamente! CUNHA: (também feroz) Seu marido, sim! Seu marido! Batata! (Selminha olha, ora um, ora outro. Está lívida de espanto) AMADO: (ofegante) Ou a senhora prefere que eu fale português claro? SELMINHA: (que se crispa para uma crise de histeria) Prefiro. Fale, sim! Fale português claro!
3 58 AMADO: Bem. É o seguinte. CUNHA: (bestial) Escracha! Escracha que eu já estou de saco cheio! (RODRIGUES 2004: 59) Percebe-se, portanto, na forma de construção do texto uma escrita sintética, organizada numa atmosfera de vibrante tensão. Talvez essa objetividade tenha contribuído, conforme expõe o crítico e psicanalista Hélio Pellegrino (1989: 360-1) para a utilização do diálogo sincopado ou policetado, sólido e nervoso, cuja semântica tem a capacidade de agir como uma cirurgia de alta precisão, conforme expõe o seguinte fragmento: DÁLIA: Olha Arandir! (Arandir aparece. Vem cansado e febril. Selminha lançase nos seus braços). SELMINHA: (na sua ternura ansiosa) Demorou, meu bem! ARANDIR: A polícia, sabe como é. (Selminha passa a mão pelo rosto do marido) SELMINHA: (amorosa) Pálido! (Selminha tira o lenço do marido e enxuga o rosto) ARANDIR: Morto de sede! SELMINHA: (para a irmã) Água! ARANDIR: Polícia é uma gente que. Dália, meu anjo. Água, sim? SELMINHA: (para a irmã) Gelada. ARANDIR: (para a cunhada) Gelada. DÁLIA: Está suado. SELMINHA: Mistura do filtro e gelada. (Dália sai) SELMINHA: Tira o paletó. ARANDIR: (tirando o paletó) Calor. SELMINHA: Gravata. ARANDIR: (tirando a gravata) Duas horas lá. (Dália entra com o copo) DÁLIA: Fresquinha. (Arandir segura o copo com as duas mãos) ARANDIR: (antes de beber) Água linda! (Arandir bebe, de uma vez só. Devolvendo o copo) Você é um anjo! DÁLIA: Outro? (RODRIGUES 2004: 28-9) Importante observar a imagem de corte cirúrgico utilizada por Pellegrino, cuja finalidade pode se traduzir como elaboração de efeito com o objetivo de atrair e prender o leitor/espectador. A eficácia dramática observada em O beijo no asfalto, assim como em outras obras dessa fase do autor tem uma explicação singular. Em 1951, Nelson Rodrigues iniciou com muito sucesso, no jornal carioca Última Hora, a publicação de A vida como ela é..., na qual contava diariamente uma história diferente, misto de crônica e conto e, conforme explica Magaldi, o autor declarou ter experimentado naqueles contos, personagens e situações que posteriormente desenvolveu em
4 59 peças teatrais. O enredo de O beijo no asfalto fez parte dessa experiência (MAGALDI 1992: 57). Esse procedimento de testar aspectos e personagens em um outro gênero literário para depois elaborar e finalizar a obra dramática expõe uma face de pesquisador da personalidade do autor, aliás, pouco difundida. Pode-se entender que o tema previamente já lhe era atraente e significativo. O fato de esse experimento ser feito na forma de conto pode transferir para a obra dramática, de alguma forma, características peculiares e inerentes aquele gênero narrativo, notadamente no que se refere à condensação da ação, pois o tempo do desenvolvimento da intriga, quer dizer, o tempo dramático entre a ação mobilizadora do enredo e o desenlace prospera em O beijo no Asfalto de forma rápida, precisa e exata. Ainda sobre o aspecto redutivo, mesmo que o número total de personagens da obra ultrapasse uma dezena, em poucos momentos pode-se observar a incidência de maior número que três personagens inclusos em cada cena. Com respeito às rubricas indicativas do espaço e das ações das personagens, estas são sintéticas e objetivas, descrevendo sumariamente o ambiente cenográfico requerido, transferindo para o diálogo das personagens toda a gama de informação referente aos espaços cênico e dramático. Como é o caso do lugar onde se passa a última cena, o quarto de hotel onde Arandir está hospedado. Para o autor parece não interessar os detalhes do espaço físico do aposento, mas apenas a atmosfera que o mesmo transmite ao desenvolvimento do enredo. A cena anterior termina com Selminha decidida em não ir ao encontro do marido e, com asco, enfatiza o motivo da decisão: o beijo de seu marido tem a saliva de um outro homem. Nelson Rodrigues escreve a rubrica do quinto quadro da seguinte forma: (Trevas. Quarto de hotel ordinário, onde Arandir está hospedado. Jornais pelo chão. Supõe-se que Dália acaba de chegar. Arandir segura a cunhada pelos dois braços.) (RODRIGUES 2004: 72). Embora não se deva considerar positiva qualquer investigação sobre como determinadas imagens ligadas à vida pessoal do autor possam vir a enobrecer sua criação poética, Nelson Rodrigues sempre destacava um fato marcante em sua vida e de importante conseqüência em sua obra teatral: a tragédia do assassinato do irmão Roberto em plena redação do jornal de propriedade da família. Magaldi (1992: 22) ressalta uma confissão do escritor, relatada em seu livro de memórias no qual ele avalia a dimensão desse fato trágico: o meu teatro não seria como é, nem eu seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto. Talvez as conseqüências dos episódios dramáticos da vida pessoal do autor tenham influenciado, de alguma forma, a essência de sua criação artística, o que, segundo Pompeu de Souza (1989: 329), fez com que esta recaísse num mergulho na mortal eternidade do Homem, um mergulho nas entranhas universais da alma humana. Em sua arte instintiva, porém pouca coisa é proposital e há que se considerar ali a existência de grande número de partos e falecimentos. Conclui o crítico, a matériaprima de seu teatro é o parto e a morte. A vida funciona como o intervalo entre um e outro acontecimento (SOUZA 1989: 329).
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